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A grama do vizinho (europeu) não é tão verde assim

Faz dois anos escrevi um post sobre o que é dançar fora do Brasil. Hoje eu volto outra vez no Dia Internacional da Dança para fazer uma nova reflexão sobre o ballet dentro e fora do Brasil. Bom, dessa vez mais fora do que dentro, mas você já vai entender o porquê o “de fora” (europeu) vai ajudar a entender o “de dentro”.

Eu finalmente terminei de ler os Anjos de Apollo, que é um livro super conhecido e considerado meio que a bíblia do ballet. Terminei com um gosto um pouco amargo na boca, e se você também já leu você provavelmente terminou com essa mesma sensação (se você não leu, um spoiler – a autora fala que acha que o ballet está morrendo!). Será que o ballet realmente está empalidecendo e fadado a desaparecer durante as próximas gerações? 

É muito difícil para mim encarar essa pergunta, simplesmente porque estou cercada de pessoas apaixonadas pelo ballet e parece que uma afirmação dessa não faz sentido. Maaas também é verdade que se eu olho para fora da minha bolha, a realidade é outra mesmo né, gente? Ballet parece coisa de criança, uma caricatura de outros tempos. Ultrapassado, brega, chato. Bom, são coisas que eu ouvi por aí e certeza que você ouviu também, em algum grau.

O desinteresse pelo ballet clássico não é uma situação exclusiva do Brasil

Aliás, é muito mais fácil por nos dedos das mãos quais são os países que têm interesse pelo ballet. A gente costuma falar “ah, lá na Europa a coisa é diferente”, mas em que parte da Europa? Entre todos os países que temos na Europa, se a gente tirar Inglaterra, Rússia, França, Dinamarca e Itália, ainda resta um montão de países que também carecem de uma tradição do ballet. E mesmo nesses países, o ballet já não desfruta mais do brilho e popularidade alcançados no início do século 20 com Diaghilev e o Ballet Russes.

Ainda não estudei o suficiente para poder examinar a trajetória do ballet no Brasil, mas eu vou contar o que eu aprendi morando na Espanha nos últimos quatro anos: a grama do vizinho europeu não é tão verde assim, gente. Você vai encontrar algumas políticas públicas que podem sustentar em maior ou menor proporção as produções cênicas pela Europa, mas o problema de falta de público ainda é um grande desafio para todos nós.

A autora de Anjos de Apollo, Jennifer Homans, comenta que a audiência do ballet hoje parece estar reduzida aos especialistas ou aos balletómanos. Sabe quando você vai ao teatro e tem a sensação de que conhece todo mundo lá? Seus amigos do ballet, outros bailarinos, professores, familiares… o círculo parece estar mais fechado e aqui eu tenho a impressão de que é mais ou menos isso também e que a audiência de ballet está envelhecendo no geral.

Porque alguns países têm mais tradição no ballet, afinal?

Eu pensava que no Brasil não tínhamos tradição porque estávamos muito longe da Europa, onde estão fincadas as raízes do ballet. Mentira. Na Espanha, por exemplo, que é literalmente vizinha da França, berço do ballet, essa cultura não se arraigou e dentre os muitos motivos, um dos que mais me chamaram a atenção é que durante o século 19 e 20, a população média costumava imitar a aristocracia e foi aí que o ballet se popularizou em alguns países – e na Espanha a maioria da população desse período essa provinciana e rural, então esse caminho não levou ao nascimento da tradição do ballet em terras espanholas.

“O ballet é uma coisa elitista, porque isso que não pegou aqui no Brasil”. Hmmmm, será? Que o ballet hoje é uma arte elitista, há espaço para muita discussão. Mas o seu nascimento foi na corte do Rei Luís XIV e apenas os nobres tiveram acesso a ele, afinal não era todo mundo que podia entrar nos salões reais e muito menos os que podiam se dar ao luxo de pagar aulas privadas com mestres de ballet. Mas durante o nascimento do ballet nos Estados Unidos, os espetáculos de ballet eram organizados em horários em que a classe trabalhadora pudesse assistir e se desconfigurou totalmente esse caráter real e imperialista que vinha da Europa. Foi criada uma identidade popular e americana, nos seus próprios termos.

Uma combinação delicada de oportunidades sociais e alavancas políticas

Tenho a impressão de que em todos esses países que a gente tem como referência, o ballet só criou raízes porque houve uma delicada combinação de circunstâncias sociais e políticas que favoreceram o florescimento dessa arte tão efêmera e frágil. Na Rússia, o Czar Pedro II queria fazer com que os costumes da Europa ocidental se alastrassem pelo solo russo, e o ballet veio junto nessa onda. Na França, o Rei Luís usou o ballet como etiqueta social e todo mundo queria parecer nobre, logo, todo mundo queria saber mais sobre o ballet. Nos Estados Unidos, existia um clima de rivalidade com a Rússia por causa da guerra fria, e os bailarinos americanos queriam de certa forma provar que eles também eram capazes de produzir grandes bailarinos e grandes ballets.

A história do ballet não é assim tão preto no branco como muitos de nós podemos imaginar. E muito menos uma história linear e crescente. Em diversos momentos da história o ballet entrou em declínio e depois se recuperou. O que é certo é que o sucesso ou fracasso do ballet não tem a ver com distribuição geográfica, nem com a cultura de um país, já que o ballet se provou capaz de amoldar-se à cultura de países totalmente diferentes entre si. 

Depois de observar tudo isso, eu me dei conta de que temos muitos bons bailarinos, muitos bons projetos e uma comunidade de pessoas desafiando os paradigmas que não vemos em todos os bons países. Talvez o futuro do ballet esteja no Brasil e a gente ainda não tenha se dado conta. Porque talento temos, e muito. E muita gente trabalhando para dar voz a essa arte: quando Noverre escreveu suas cartas sobre dança, duvido que ele imaginaria que ainda estaríamos lendo elas em 2021. Quando Diaghilev levou um pequeno grupo de bailarinos para uma tour na Europa, desconfio que ele não imaginava que isso marcaria a história do ballet para sempre. Talvez a história que estamos escrevendo agora não esteja clara aos nossos olhos, mas podem se tornar visíveis nas próximas gerações.

Foto: Margaret Seymour, Royal Ballet, vestida para O Lago dos Cisnes em seu camarim no Empire Theatre, Sydney, 29 de Outubro de 1958. Foto de Norm Danvers.

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