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O Ballet fora do Brasil é…

Para comemorar o Dia Internacional da Dança, um olhar sobre os contrastes entre o Brasil e  o exterior com respeito ao ballet, seus métodos, técnicas, cultura e relacionamento.

Eu sempre ouvi falar sobre como o ballet “funciona” fora do Brasil. Inúmeras discussões. Fato é, eu nunca soube de verdade o que era dançar fora do meu país e como era a relação de outros países com o ballet até que eu comecei a observar algumas dessas diferenças depois de me mudar para a Espanha. A partir dessas observações e também da colaboração de alguns colegas, reuni aqui algumas dessas diferenças entre o Brasil e o exterior. E olha… nem tudo é como parece, mas vou contar os detalhes logo a seguir. Se você também tem essa curiosidade de saber como é a dança fora do solo brasileiro, espero que possa esclarecer um pouco esse assunto por meio deste artigo!

Os métodos de ballet mais populares no exterior e os desafios para os bailarinos brasileiros

Em entrevista com a bailarina do Pennsylvania Ballet, Thays Golz, uma coisa ficou clara: realmente existe um certo tradicionalismo presente nas grandes escolas europeias de usar o método russo (Vaganova). Durante o tempo que estive na Alemanha, o método russo era sem dúvidas muito predominante. Tínhamos professores nativos e uma grande pressão para nos aperfeiçoar nessa técnica conta a bailarina sobre sua experiência de quando estudou na escola alemã John Cranko Schule.  Esse detalhe também foi observado pelo professor e bailarino (e fundador do Agenda de Dança!), Tarcísio Cunha. Trabalhando há dois meses como bailarino/dançarino no “Sun World Ba Na Hills”, um parque no Vietnã que traz shows temáticos de diferentes países, Tarcísio diz: “fui fazer uma aula de ballet e ao ver algumas meninas ucranianas que também trabalham no parque, logo imaginei que elas tivessem estudado o método russo. Para minha surpresa, elas disseram que não – o Vaganova era característica de grandes escolas e companhias de Ballet”.

No cenário “popular”, as escolas europeias que não são profissionalizantes costumam apresentar mais variedade nos estilos. No Brasil, tenho a impressão de que o método inglês (Royal o RAD) é o mais difundido, mas na Espanha eu acabei encontrando uma diversidade que até então era desconhecida para mim: estudo numa escola em Madrid onde a dona é italiana, formada no método russo e meu professor é cubano! Usando mais uma vez a Alemanha como exemplo, na opinião da professora Amanda Oliveira que vive em Berlim há três anos, o ballet adulto aí é uma caminhada enriquecedora: “há escolas que convidam professores diferentes por um determinado tempo. Esse cenário requer mais agilidade dos bailarinos para assimilar diferentes didáticas e estilos de aula. Cada aula flui de uma maneira muito diferente, mas é um excelente oportunidade de experimentar movimentações diferentes

Falando sobre agilidade, Thays revela que nos Estados Unidos sua experiência foi bem diferente da que teve na Europa no que se refere a defesa de um método de ballet em particular: em uma companhia profissional não há um método específico de treinamento, pois temos diferentes professores com diferentes técnicas – o que eu acho muito válido, pois você se torna uma bailarina versátil e experiente. Quando você tem que dançar um ballet de Balanchine, William Forsythe, Jerome Robbins ou Jiří Kylián, por exemplo, você já tem um conhecimento do estilo de movimento de cada um, que são bem diferentes um do outro”

De acordo com a pesquisadora Tamires Vasconcelos Serpa no artigo “Todo corpo pode dançar?” apresentado no IX Congresso da ABRACE (Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas), o corpo brasileiro é fruto de miscigenação e por isso, apresenta um biotipo diferente do corpo europeu. Klauss Vianna, que é bailarino, coreógrafo e professor de dança chegou a dizer que, devido fato de que nós não temos um corpo tão longilíneo quanto o do bailarino europeu, percebe-se em muitos brasileiros a presença de um pensamento de que o ballet tem uma técnica antianatômica. No entanto, Vianna destaca que o brasileiro pode dançar de forma tão bela como o de outras nacionalidades. E nesse ponto, ambos autores discutem a velha dicotomia entre técnica e expressividade, barreira tênue quando se fala nessa técnica de dança considerada a mais complexa do mundo, ainda que com suas variedades no que diz respeito as diferentes escolas do ballet.

Acredita-se que este ideal de um arquétipo de cisne, longilíneo e esbelto, possa ter sido iniciado a partir da bailarina Ana Pavlova e sua atuação no balé “A morte do cisne”, especialmente coreografado para ela por Mikhail Fokine (1905). Desde então se percebe esta mudança de corpos antes mais volumosos e com formação muscular aparente para um ideal fino e quase frágil visualmente, até chegar à Misty Copeland, que possui um corpo atlético e não tão magérrimo, porém com linhas de pernas e alongamento presentes

ressalta Tamires, em referência a uma matéria publicada na revista Vogue em 2015 com a linha do tempo da evolução do corpo de grandes bailarinas.

 

Da esquerda para direita: Marie Taglioni (1850), Anna Pavlova (1924) e Misty Copeland (2014)

Da esquerda para direita: Marie Taglioni (1850), Anna Pavlova (1924) e Misty Copeland (2014)

A nível de curiosidade: o Comitê ABNT/CB-17 do SEBRAE iniciou, em 2010, um estudo chamado “SizeBR – Estudo Antropométrico Brasileiro” para determinar a nova norma de padronização do vestuário feminino. Neste estudo (publicado neste artigo em 2014) foi identificado que, devido a miscigenação das brasileiras, era  impossível determinar com rigor o padrão de corpo das mulheres para todo o país. Portanto era necessário dividir os “padrões” por região. Nas regiões norte e centro-oeste, a população é de brancos, índios e mamelucos (mestiços descendentes de brancos e índios); no nordeste, além das etnias presentes no norte e centro-oeste também está presente uma população de cafuzos (mestiços descendentes de negros e índios); na região sudeste, a população é composta por todos os grupos étnicos e na região sul, maioria branca de origem européia (alemã e polonesa).

Ainda que exista uma certa discussão sobre a origem do ballet (se seria na Itália ou na França), é certo que o ballet nasceu na Europa e perfeitamente compreensível o motivo pelo qual que o físico europeu foi o “modelo” de corpo para a criação e estabelecimento da técnica clássica. Mesmo assim, o impressionante de pensar nisso nos dias atuais é que, quase 200 anos depois da criação do ballet, de todos os notórios métodos que existem hoje, apenas um, o cubano, foi criado pensando no físico de bailarinos não-europeus. Mesmo que seja uma adaptação com bases nas escolas europeias, é ainda o único grande método pensado em aproveitar as potencialidades e trabalhar as dificuldades de um outro grupo étnico, nesse caso, o latino. Nesse sentido, ao que tudo indica, a melhor estratégia do bailarino brasileiro na busca do seu máximo desempenho no ballet clássico é o autoconhecimento – independentemente  do país em que esteja dançando. Sabendo que a maioria dos brasileiros não tem o físico idêntico ao europeu mas tampouco pertencem a uma homogeneidade étnica predominante, o aperfeiçoamento da técnica do ballet para o nosso tipo de corpo é um desafio extra compartilhado entre todos aqueles que pertencem a outras etnias e que transcende o tipo de método estudado.

A cultura e o relacionamento de outros países com a dança

A relação que o europeu tem com o teatro também é bastante diferente. A Thays diz que achou incrível ver como as pessoas na Alemanha viam esse tipo de entretenimento como uma coisa comum e acessível. A minha impressão foi a mesma: uma vez arrisquei dizer no trabalho aqui na Espanha (e vale ressaltar que não trabalho a área de dança) que queria assistir um ballet e fiquei impressionada quando os meus colegas começaram a comentar sobre esse assunto com a mesma fluidez que a gente conversa no Brasil sobre o último álbum da Anitta ou sobre o próximo filme da Marvel.

Realmente não tem como negar os boatos de que a dança no Brasil não é apreciada dessa forma. Ainda temos aquela visão de que espetáculos de ballet são uma coisa elitista e pouco acessível. Mas esse cenário já não é mais verdade. Existe um site maravilhoooso (cof cof) onde você pode consultar uma agenda com diversos eventos, mostras e exposições não só de ballet clássico, como também de muitos outros estilos. Por exemplo, consultando essa agenda vi que a rede de cinemas UCI (que tem salas nas principais cidades brasileiras) tem exibido ao vivo diretamente de Moscou uma série de ballets de repertório com preços a partir de R$ 25. Está na mesma faixa de preço dos ingressos vendido para “Vingadores: Ultimato” na rede de cinemas “Cinemark” em São Paulo.

Sobre a quantidade e temática dos trabalhos desenvolvidos ao redor do mundo, para se ter um noção do que se tem feito por aí resolvi dar uma olhada em como foram as últimas temporadas das algumas das cinco maiores companhias de ballet do mundo (lista extraída da matéria criada pelo site Buzz Dance Channel TV – a ordem em que as companhias são apresentadas é apenas alfabética!).

Queria classificar as obras entre modernas e clássica tendo em conta como “modernas” as obras criadas depois do final do século XIX e início do século XX (a partir de 1890, aproximadamente) já que essa é a data aceita como o nascimento do ballet moderno. No entanto, há alguns ballets criados depois desse período que ainda seguem toda a estrutura do ballet clássico, como por exemplo “Harlequinade” criado em 1900 ou “Cinderela” com estreia em 1945, mas que são inegavelmente obras pertencentes ao estilo clássico, então achei melhor checar trechos dos ballets que eu não conhecia para determinar se são clássicos ou modernos Os dados coletados são da temporada de Maio a Julho de 2019 e tentei filtrar apenas obras apresentadas pelo corpo local.

Fonte: feito pelo autor

Analisando essas cinco companhias, é possível perceber que nas suas respectivas temporadas atuais, todas elas apresentam obras clássicas e modernas, evidenciando a presença de um corpo de baile flexível para performar em ambos os estilos. Nessa rápida avaliação também foi possível  notar que o Bolshoi e o Ballet Nacional de Cuba são as únicas entre as companhias analisadas que possuem mais ballets de repertório do que ballets modernos – na companhia cubana então, não há nenhuma obra moderna nessa temporada.

Para efeitos de comparação, escolhi  para representar o Brasil o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, que acredito ser uma das principais companhias nacionais no que se refere ao ballet clássico. O destaque atual vai para a estreia de Thiago Soares como coreógrafo do ballet moderno “Be-Marche” e da apresentação do Ballet Nacional da China, mas a companhia de ballet local não tem nenhuma obra em cartaz nesta temporada. Se vamos para São Paulo e analisamos outra grande e competente companhia de Ballet, a Cisne Negro Cia. de Dança, também não encontraremos boas notícias: no site atual, não está planejada nenhuma performance da companhia para os próximos meses, apenas encontrei “O Quebra-Nozes” para Dezembro de 2019.

Do ponto de vista econômico, não há um consenso de que oferta e demanda podem se influenciar mutuamente. Ou seja, não é garantido que, se houvessem mais espetáculos de ballet no Brasil, haveria mais público para consumi-los, assim como também não seria garantido que se houvessem mais pessoas interessadas em consumir esse tipo de entretenimento, consequentemente haveria mais oferta de espetáculos. No entanto, há alguns pontos a considerar nessa relação de oferta e demanda que podem alterar o cenário da dança.

Se analisarmos o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) dos países onde estão essas essas cinco grandes companhias, veremos que, com exceção de Cuba, todos estão no grupo de “Muito Alto Desenvolvimento Humano”. Cuba e Brasil estão no grupo seguinte, chamado de “Alto Desenvolvimento Humano”, Cuba na 73º posição e Brasil na 79º posição de acordo com lista publicada no final de 2018. Já que o IDH leva em consideração a expectativa de vida ao nascer, os Anos Médios de Estudo/Anos Esperados de Escolaridade e o PIB (Produto Interno Bruto) per capta, podemos entender que talvez haja uma ligação clara entre esses fatores e o consumo de espetáculos de dança. A dança é um produto de consumo que seria categorizado como “luxo” pelos economistas, não por ser caro ou elitista, mas por não ser algo extremamente básico ou necessário como água, por exemplo. Entendo então que os países que têm suas necessidades básicas atendidas podem consumir mais este produto de “luxo” e têm mais acesso a cultura.

Ok, olhando desse ponto de vista não parece ciência de foguetes minha última afirmação. Então seguindo em frente para outro fator: marketing, divulgação ou popularização do ballet. Aqui em Madrid eu sempre vejo nas estações de Metrô cartazes anunciando espetáculos de dança, mostras de arte ou exposições. Morando em São Paulo, se não me falha a memória era difícil ver algo do tipo, a não ser que fosse alguma coisa muito grande (como a Exposição do artista hiperrealista Ron Mueck que fez a Pinacoteca bater recorde de público em 2015). Talvez nossa saída seja por aqui, ampliando a divulgação e porque não por meios não tradicionais?

Uma coisa que o Royal Ballet faz e eu acho impressionante é que, boa parte da agenda deles é dedicada a conectar o público com a arte de uma maneira muito mais participativa do que na relação artista versus plateia. Existem milhares de eventos para você conversar com os coreógrafos, assistir os ensaios, participar de uma aula, discutir uma coreografia, enfim. Até programas para crianças existem e isso é envolver a comunidade e fazê-la entender de que a arte é esse espaço de troca e que qualquer um pode pertencer a ele. O Tarcísio contou que durante as apresentações de dança no “Sun World Ba Na Hills” as pessoas ficam curiosíssimas de ver o que está sendo apresentado. É um espaço não-tradicional, mas que ajuda nessa conexão e funciona como estratégia para despertar o interesse das pessoas que não estão acostumadas a consumir esse tipo de entretenimento. Uma vez tive a oportunidade de dançar num museu. Pude olhar nos olhos de todos ao meu redor, porque estávamos a poucos centímetros de distância”, diz a Thays. Talvez dessa forma, com esses projetos inusitados, o ballet alcance o perfil de uma pessoa que nunca pensou em assistir um espetáculo de dança e assim, aos poucos, a gente possa ir construindo esse novo público no Brasil que veja o teatro como uma opção tão atrativa como o cinema, shows e etc.

O talento e a determinação brasileira nos palcos

Apesar de termos que lutar com a tão presente síndrome do vira-lata, os bailarinos brasileiros mostram que possuem o necessário para brilhar nos palcos no Brasil e do mundo. Existe um brilho, um carisma, uma paixão que nós temos que nos leva longe. Talvez seja pela nosso contexto, onde tivemos que nos esforçar tanto para conseguir frequentar as aulas de ballet, pagar sapatilhas, collants e inscrições em festivais… enfim, todos os sacrifícios que sabemos bem como são. Talvez esse histórico nos motive a lutar e querer seguir em frente, pois sabemos o quanto custou chegar onde estamos. E não falo só dos bailarinos profissionais, falo também de gente como eu que ensaia o ano inteiro para se apresentar uma ou duas vezes final do ano com a escola (e essa é a maior alegria que temos!).

Seguimos com os nossos desafios, seja em relação a técnica do ballet que exige muito dos nossos corpos latinos, seja em relação aos esforços para a democratização da dança para todas as etnias, seja para a promoção do ballet com uma opção acessível de cultura entre os brasileiros. Para terminar esse artigo, mais do que um sentimento de desafio, espero que tenhamos um sentimento de esperança e de que as coisas possam melhorar pela frente independentemente das barreiras e dificuldades.

Um agradecimento especial aos entrevistados:

Thays Golz
Instagram: @thaysgolz

Thays começou seu treinamento no Raça Centro de Artes sob a direção de Roseli Rodrigues e Edy Wilson. Passou pelo  John Cranko Schule na Alemanha, depois de ganhar uma bolsa do Youth American Grand Prix (YAGP) em 2011. Em 2016, Thays conquistou o 2º lugar nas finais do YAGP pela categoria “Senior Age Division” conseguindo um contrato com o Houston Ballet onde dançou por dois anos antes de integrar-se ao Pennsylvania Ballet para a temporada de 2018-2019.

 

 

 

Tarcísio Cunha
Instagram: @tarcicunha

Idealizador, criador e diretor geral do site Agenda de Dança. É formado em Comunicação Digital, pela UNIP, e em Ballet Clássico, pela ReveranCCe Núcleo de Dança. Iniciou os estudos na dança em 2007, estudando as modalidades jazz, dança de salão, contemporâneo e ballet clássico. Integrou a Cia. de Dança Wagner Alvarenga entre 2010 e 2011; atuou como coreógrafo e bailarino para os espetáculos da Leonor Buck Ballet e Arte, Cia Artística En’cena entre outros. 

 

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